segunda-feira, fevereiro 01, 2010

A ciência moderna e a relação homem-máquina

Luis Henrique Diniz



Eu não vim aqui para dizer como isso vai acabar. Eu vim aqui para dizer como isso vai começar. Vou desligar esse telefone e mostrar a essas pessoas o que [você] não quer que elas vejam. Vou mostrar a elas um mundo sem você. Um mundo sem regras e sem controle, sem limites e fronteiras. Um mundo onde tudo é possível. Para onde vamos daqui, é uma escolha que deixo para você (Matrix, 1999).


O presente trabalho tem por objetivo avançar na discussão do crescente uso da tecnologia no meio científico, dando ênfase à sua relação com o antigo, mas ainda não superado, projeto moderno de uma ciência objetiva.



A pretensa objetividade da ciência moderna


A ciência moderna é inaugurada por René Descartes (1596-1650), tido como o precursor da filosofia moderna, a partir de sua obra são edificados pilares importantes da ciência moderna, como o racionalismo e a rejeição às experiências sensoriais. Assim o pensamento cartesiano, fundamentado no "eu" e na razão, põe em dúvida o senso comum, bem como o testemunho dos sentidos. Com a ruptura dessas percepções, o cientista estaria livre da subjetividade, dos infrutíferos "vôos imaginativos", atendo-se exclusivamente à observação objetiva da realidade (Hissa, 2002).


A imaginação é colocada, desta forma, como um obstáculo à visão objetiva das coisas, é dela que surgem os "fantasmas que perturbam o conhecimento" (Alves, 1985). De forma que o projeto da ciência moderna calca-se claramente na distinção e sistematização do que é ciência e o que não é, de uma metodologia científica, baseada na idealização do olhar objetivo do sujeito, através de uma relação feita de distância, estranhamento mútuo e de subordinação do objeto ao sujeito (Santos, 1989).


O homem é "liberto" da natureza pela razão, no mito da expulsão do paraíso pelo fruto do conhecimento, e daí o homem é visto como sujeito e a natureza enquanto objeto, modelável. A partir do momento em que se pensa em uma natureza humana, o homem passa a ser também objeto, e quem é o sujeito? O homem distanciado, ou mais tarde, o não-humano.

Porém, esse projeto, já em seu princípio, apresenta-se deveras inocente por algumas questões fundamentais, tal como o questionado por Hissa:


A isenção, a imparcialidade e a objetividade, metas da ciência moderna, são realmente possíveis? Como admitir o observador libertando-se de cargas ideológicas, posto que está inserido em um contexto social, político, ético e cultural? É possível construir uma relação entre sujeito e objeto, nesses termos, tão asséptica? (Hissa, 2002)


Dessa forma o projeto de uma ciência moderna necessita de um ente que seja distanciado do objeto, que veja as coisas de fora e possa, por sua visão objetiva, descrever de forma imparcial o objeto. Como se o objeto fosse exterior ao sujeito, e não uma construção do próprio.


O projeto de uma ciência moderna tem aí sua grande limitação, pois não leva em conta que uma parte importante da ciência é viabilizada pelo fato de parte do sujeito estar presente no objeto, de forma que o contato entre ambos está condicionado a elos comuns de linguagem entre ambos, o objeto está carregado de significação dada a ele pelo homem e sua percepção de realidade. Toda visão é carregada de valores, se apresentando assim como releitura, "leitura sobre leitura" (Hissa, 2002).


A objetividade idealizada pelos fundadores da ciência moderna não passa de uma utopia, de um atalho sonhado que não conduz as realizações aos lugares prometidos (Hissa, 2002).



A utilização de técnicas na ciência moderna


Em sua busca pelo olhar objetivo, a ciência moderna baseia-se em métodos de análise, mediadas pela técnica e por instrumentos tomados como rigorosos, que livrariam o sujeito de fantasias perniciosas à construção do conhecimento objetivo. Dessa forma, cria-se modelos, por essência simplificadores, para lidar com a realidade, modelos esses, utilizados por técnicos. Esses modelos dão base a um fazer irrefletido, que sempre corre riscos quanto a lançar os indivíduos à aparência das coisas, limitando àquilo tudo o que pode ser tomado como realidade.


Então, assim, o mundo estaria pronto para ser desnudado: compreendido em sua aparência e superfície. Nada escaparia ao olhar do sujeito. O desvelar das realidades externas apenas dependeria de um "fazer", prático, muito mais mediado pela técnica – que lhe garantiria a objetividade – do que pela reflexão ou pensamento (Hissa, 2002).


Essa forma de construção do pensamento, além de impor fórmulas mecânicas e fragmentadas de interpretação da realidade, mediadas, sobretudo, pela calculabilidade, pelo que pode ser mensurado e quantificado, impõe uma fragmentação científica em torno das atividades práticas.

Dessa forma, no mundo moderno, é o caráter técnico de um pensamento que lhe dá a condição de científico, quando na verdade a ciência deveria estar além da técnica, já que a técnica na da mais é do que uma contingência instrumental produzida pela ciência. O superdimensionamento da técnica mascara a sua incompletude analítica. O melhor exemplo talvez seja o caso das estatísticas:


As "estatísticas não dizem nada: é preciso fazê-las falar". Não se quer ignorar a importância das estatísticas e das quantidades contidas no mundo, mas elas devem ser relidas: o discurso estatístico é sempre o discurso do pensamento e da reflexão. Fazer com que as estatísticas "falem" é construir o discurso da ciência: do pensamento, da reflexão e da crítica, pois não há técnica aplicada que possa prescindir da teoria (Hissa, 2002).


A observação estatística, enquanto produção de fatos (Besson, 1995), não dá conta da realidade, pois os fatos não são a realidade em si, mas sim uma imagem dessa realidade, o que é bem diferente. Além de que a própria construção de tais técnicas recebem um elevado grau de valores na determinação de suas hipóteses, tal como na construção de modelos.


Para construir um modelo – Palomar sabia –, é necessário partir de algo, ou seja ter princípios dos quais derivar por dedução o próprio raciocínio. Esses princípios – também chamados axiomas ou postulados – nós não os escolhemos a posteriori, mas já os temos, porque se não os tivéssemos não poderíamos nem sequer nos pôr a pensar (Calvino, 1983).


Assim, o projeto de objetividade da ciência moderna, através da supressão de mitos, supostamente, perniciosos à construção da ciência, cria outro mito, esse sim pernicioso, já que limitador, do sujeito imparcial, exteriorizado do mundo observado, que mediado pela técnica, tem uma visão objetiva do mundo.



A máquina automática


Nos dias de hoje, o projeto de visão objetiva da ciência moderna vai ao seu limite. Isso acontece quando os modelos técnicos vão ao seu auge, quando mediado, sobretudo pelas novas tecnologias digitais, surge a figura do automatismo.


Esse é o auge do projeto de objetividade da ciência, já que não se pode exigir do homem essa objetividade, passemos essa responsabilidade para as máquinas, essas sim têm uma visão objetiva do mundo, elas materializam os modelos técnicos, surgindo assim a figura do automatismo, conceito maior do triunfalismo mecanicista e ideal mitológico do objeto moderno. O automatismo é o objeto ao tomar uma conotação absoluta na sua função particular (Baudrillard, 1968). Ela encarna outro projeto da modernidade: a de sistematizar todos os objetos, classificando-os, limitando sua conotação à sua funcionalidade técnica, interna a um modelo.


Dessa forma o projeto da ciência moderna passa a ser o projeto de desumanização da ciência, em prol da busca da objetividade. Isola-se o homem de uma realidade, para a qual ele é cego, tem uma visão distorcida, dando lugar à máquina, objetiva, por uma ideologia do distanciamento. Seguindo este raciocínio, virtualmente essas tecnologias funcionariam como uma nova lente para o nosso olhar, substituindo a relação Olho-natureza pela relação Cérebro-informação.


Quando a imagem migra para o domínio do código e perde sua presença, seu aqui e agora, submetida às operações de cálculo e modelização, o que está em jogo não é apenas uma mudança de suporte ou de regime semiótico, mas a substituição do par Olho-natureza pelo Cérebro-informação (Guimarães, 2002).


Assim, pensar-se-ia na perda, pelo homem, dos "deuses" que não residem na técnica, na ciência, na história e nem na economia, estes só poderiam encontrar abrigo no lugar nenhum da Floresta Negra. Entretanto, os "deuses" se fazem presentes tanto nas "partículas subatômicas quanto nos velhos tamancos de madeira talhada à mão, tanto na agricultura industrializada quanto na poesia de Hölderlin: 'as redes estão preenchidas pelo ser. E as máquinas estão carregadas de sujeitos e coletivos'" (Latour, 1994).


O projeto da ciência moderna, assim, se mostra mais uma vez equivocado, à medida que não reconhece que não existe realidade, objetiva ou não, sem o homem, é o homem que dá significação ao espaço ao seu redor. A própria máquina de objetividade, os modelos técnicos são carregados de humanidade, e como tal são objetos ideologizados e parciais. Dessa forma o projeto científico moderno se apresenta muito mais como um imperialismo dos saberes, por parte de um saber único, e dessa forma ideologizado. O próprio avanço técnico real não se dá através da máquina automatizada, que deve sacrificar muitas possibilidades de seu funcionamento, estereotipando sua função e tornando-se frágil, mas sim das máquinas com uma certa margem de indeterminação, o que permite à máquina ser sensível a informações exteriores, lhe dá flexibilidade.


A máquina de alta tecnicidade é uma estrutura aberta, pois o conjunto das máquinas abertas pressupõe o homem como organizador e intérprete vivo (Baudrillard, 1968).



Por uma nova relação homem-máquina


Como o exposto nesse trabalho as tecnologias têm encarnado o projeto moderno de visão objetiva do mundo, o que limita nossa percepção à modelos quase sempre simplificadores da realidade, e que excluem dinâmicas internas à sociedade que possuem justamente o "germe" da mudança. Isso não significa que devemos abandonar as máquinas e desenvolvimento tecnológico vigente, muito antes pelo contrário devemos fazê-los trabalhar para o desenvolvimento científico, como instrumento, tendo em vista suas limitações.


Nesse processo, ao contrário do defendido pela ciência moderna, a sensibilidade humana ganha papel fundamental. O filme Matrix (1999), roteiro e direção dos irmãos Wachowski, ou o livro Eu, Robô[1] de Isaac Asimov (1950), demonstram bem essa questão.


O filme Matrix se passa no ano de 2199, em que grande parte da humanidade foi feita prisioneira de uma ilusão, representada por um software de simulação, a Matrix, vivendo em um mundo irreal, criado pela própria máquina. Para além da possível interpretação tecnofóbica possível no filme, neste a personagem principal, Neo, tem três características básicas que o possibilitam enfrentar a Matrix, seu conhecimento sobre o funcionamento tecnológico, sua sensibilidade e curiosidade. São essas duas últimas características que o tornam essencialmente humano, e é por essas características que ele consegue romper a alienação em que estão inseridos todos os seres humanos, podendo enxergar as possibilidades que o mundo lhe apresentava, além das possibilidades limitadas que o modelo da Matrix lhe impunha, passando mesmo a se utilizar de outra forma da própria Matrix.


Já no livro Eu, Robô, o autor centra em um mundo futuro repleto de robôs que convivem ao lado dos humanos, e em uma série de contos ele ilustra essa relação de homens e máquinas, em que o homem se utiliza dos robôs, mas sempre os humanos são necessários, com sua sensibilidade, para supervisioná-los em suas limitações. O final do livro representa justamente uma reflexão sobre a possibilidade das máquinas de funcionarem independentes dos homens, em sua visão de realidade, o que o livro deixa em aberto.


Esses dois exemplos demonstram relações homem-máquina não excludentes, em que a sensibilidade humana é necessária na observação da realidade, rompendo este mito da visão limitada do homem. A relação entre homem e máquina deve ser repensada de forma que as máquinas possam ser utilizadas em seu papel de potencializadora do trabalho humano, sem que no entanto, nossa visão seja limitada pelos modelos sobre os quais elas trabalham.



[1] No caso o filme lançado já no século XXI não é uma boa referência, já que centra no modelo "a criatura se volta contra o criador", ao contrário do livro, amplamente reproduzido em filmes do final do século XX, tais como Blade Runner, o caçador de andróides (1982), O exterminador do futuro (1984), etc, que não ilustram tão bem a análise aqui proposta.

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