quarta-feira, setembro 04, 2013

Dilma, ações emergenciais e as brechas institucionais



  Chegaram de avião os médicos cubanos salvadores da pátria. Já no saguão do aeroporto, guiados pelo ministro-candidato da saúde, Padilha, as primeiras declarações não deixavam dúvidas: vieram para trabalhar nos locais ermos e pobres, para ajudar em um causa humanitária. Vieram para fazer exatamente o que os brasileiros não querem, por estupidez ou egoísmo - e o melhor, eles ficarão "presos" a esses locais, de modo a não concorrer com os brasileiros nos grandes centros.


         Eu torço para que a Dilma consiga fazer seu programa dos médicos, porém ela governa um trem desgovernado, uma espécie do "governo que não havia lá", ou "o governo que não existe". Torcer não remove montanhas. A trajetória da Dilma e do governo infelizmente não dão esperanças.


       A maioria dos governistas achavam até outro dia que estávamos ótimos - o Brasil estava em um mar de rosas, enquanto o mundo desenvolvido pagava seus pecados. Tudo bem se o governo Dilma não era lá essas coisas, o Brasil já tinha mudado com o Lula, e, de certa forma, ficar “parado” (o governo) já garantiria naturalmente o desenvolvimento brasileiro.


        As manifestações e a guinada na economia mundial parecem ter sido um balde de água fria na cara dos petistas e simpatizantes, ou ao menos obrigou o governo a olhar para o lado e tentar mudar o discurso unilateral e autoritário. O engraçado, porém, na prática política, é a capacidade de distorcer as ideias e os símbolos, ou seja, o governo se aproximou das manifestações de rua, mas sem mudar de fato em um triz o seu modo de governar. É como se o animal petista-brasilienses virasse o pescoço, mas não virasse o corpo de fato, ao grunhido das ruas.

 
     Quem é contra os médicos? É a nova bravata da presidente Dilma. Mas como acreditar em um governo que de fato não existiu? Como acreditar em um governo, que se contentou com seu crescimento vegetativo e não alcançou nenhuma das metas estabelecidas, poder, agora, há um ano das eleições, implementar um programa emergencial que consiga sanar de forma imediata grande parte dos problemas relacionados `a saúde no Brasil? Se uma medida consegue ser eficiente e atinge grande parte de seus objetivos é porque ela  deveria ser alçada a uma política de estado, e não a uma reles “condição emergencial”. Políticas emergências são usadas em catástrofes, desastres inesperados e epidemias, ou seja, situações realmente inesperadas. Situações crônicas de calamidade social, que se estendem a séculos, deveriam ser tratadas com planejamento e eficiência. Se não é o caso, o governo deveria admitir logo que a saúde brasileira vive em estado de guerra permanente (o que não é muito distante, nem desconhecido) e que o programa visa apenas  a "enxugar gelo". Pois o problema dessas medidas ditas emergências é que elas representaram no geral um custo alto (a  estagnação da agenda política e do planejamento do país, e portanto paralisação das outras instituições que não o executivo federal), mas tem efeito inócuo ou pouco representativo na realidade dos brasileiros.

 
       Vejamos o exemplo de um outro programa carro de frente da Dilma desde os tempos Lula, o PAC. Na época de seu lançamento, o objetivo era o de fazer um "choque de investimentos e na administração pública", contemplando medidas a serem tomadas entre os anos de 2008 e 2010, e algumas medidas que teriam efeitos de longo prazo.

        Veja algumas notícias do lançamento do programa `a época:




        O programa era para ser temporário, justamente para realizar algo que se pretende agora, aumentar, como uma medida emergencial, a taxa de investimento público, declaradamente muito baixa e insuficiente para repor adequadamente a infraestrutura do país. Obviamente que era sabido que deveria haver um aumento estrutural na capacidade de investimento do estado, mas o programa se propunha a dar um salto nos investimentos a partir de algumas medidas e obras. O que ocorreu no entanto é que as ações não saíram do papel na velocidade desejada, os efeitos demoraram a surgir, e o programa, que era para ser temporário, acabou se tornando permanente.


         Porque então a Dilma tem a mania de anunciar suas medidas como emergenciais e temporárias? O Minha Casa, Minha vida, também pretendia-se a solucionar, em grande medida, o problema do déficit habitacional no país. Após alguns anos, constatou-se que a maior parte do crédito destinava-se a imóveis de classe média e alta, de modo que o programa estava servindo mais para encher os cofres das grandes construtoras a juros subsidiados. As casas realmente populares são poucas, demoraram a sair, e sendo feitas quase que directamente pelo governo, não são raras as denúncias de malfeitorias e desperdício de dinheiro público


        O ganho político eleitoral de se anunciar o fim do déficit habitacional (ou o fim da miséria, como se pretende agora), no entanto, não tem preço. Adiciona-se a isso grande parte do autoritarismo nacionalista da presidenta e chega-se então `a sua fórmula de governar por bravatas, que acabam com o tempo desmoralizando as ações do próprio governo. Felizmente, o povo brasileiro atem-se cada vez mais `a prática das necessidades do dia a dia, e menos aos discursos ideológicos de seus governantes. (Apenas para ser justo, o próposito inicial do programa, “construir 1 milhão de casa”, 4 anos após o lançamento, foi cumprido, mas para mim ainda não é claro quantas desse total são realmente populares. http://mcmv.caixa.gov.br/numeros/).


        No caso do programa dos médicos, o custo político-eleitorial também é baixo, dada a estratégia dilmista (varguista) de tudo ou nada (ou estao comigo ou contra mim). Na verdade o governo já está lucrando eleitoralmente com a medida, num momento em que as manifestações apenas deram uma trégua. É difícil ir contra a medida; independentemente de seu efeito, ela vai ajudar o Padilha a sair como candidato nas eleições do ano que vem.  Obviamente que os médicos não são a causa do problema, mas são parte dele, assim como o funcionalismo público no geral. Contrapor a classe seria ótimo, se algo fosse realmente feito. Permitir que os médicos estrangeiros fossem para onde quisessem, aumentando a concorrrência nos lugares de maior oferta de trabalho e permitindo a equalização dos salários nas diversas áreas seria o primeiro passo. Médicos cubanos trabalhando para o Brasil e recebendo de Cuba, com restrição completa de escolha de local de trabalho, coexistindo com o regime normal dos médicos, não faz sentido nem do ponto de vista moral, nem econômico (pra começar, esse plano vai sistematicamente trazer mais médicos, ou será enterrado após a campanha do ano que vem?)
  

      O que o Brasil precisa em seus vários setores (inclusive na política) é de mais concorrência, e não da criação de mais regimes de excepcionalismos.


      A Dilma não vê problemas em colocar a população contra os médicos, assim como colocou contra os bancos, contra as empresas, etc...


       Para justificar minha descrença inicial neste governo, vou ficar apenas em dois do que seriam objetivos fundamentais da Dilma (vou pegar leve e nem vou citar a meta principal de “erradicar a miséria”): a política de juros e de investimentos.

    
       A Dilma comprou uma briga com o Banco Central para a redução sistemática dos juros. Não há segredo nenhum disso. A subordinação do presidente do Bacen aos interesses do Ministério da Fazenda, em tese em defesa da produção e emprego em detrimento do controle da inflação, foi um retrocesso (mais económico do que institucional) em relação ao que se tinha no governo Lula. Na prática, o que se tem hoje é que os juros estão no mesmo nível de maio de 2012, o segundo ano do governo Dilma, quando ela começou a forçar uma queda maior dos juros, com uma inflação MAIOR do que antes! Eu me pergunto: de que adiantou afinal esse esforço intervencionista do governo, a não ser para deixar claro para toda a sociedade quem mandava no governo?


       As trajetórias da SELIC e do IPCA nos ultimos anos:




     É sabido também que o efeito das variações na SELIC (a taxa de juros afectada pelas decisões do Bacen) não apresentam efeito imediato e previsível sobre as atividades económicas, sobretudo em relação em relação ao consumo. De fato, a SELIC tem efeito sobretudo na liquidez de agregados monetários mais gerais, próximos `a moeda. O crédito pessoal permanece com juros muito altos, sobretudo devido ao "spread", uma espécie de taxa de serviço, ou mesmo de lucro, paga ao banco. A Dilma comprou outra briga com os banqueiros pela redução do spread e depois estendeu a pressão para toda a iniciativa privada. O discurso oficial era: "os bancos e as empresas lucram muito, mas prestam péssimos serviços e cobram altos juros e altos preços".


     A guerra contra os mal serviços estendeu-se até mesmo sobre as ações e investimentos públicos, comprometendo a licitação de hidreléctricas e de obras em aeroportos, dentre outras, para a iniciativa privada. No geral, o governo considerava as condições da iniciativa privada abusivas, dada a qualidade do serviço. As medidas do governo com esse teor neo-nacionalista atingiu seu ápice no início de 2014 com 2 medidas: o desconto na conta de luz e o congelamento dos preços de transporte público em algumas capitais.


       No final nao mudou nada, só piorou, ainda vivemos no mundo dos juros enormes e serviços calamitosos.   


        Se as medidas no geral tem pouco efeito prático para a população, podem haver alguns malefícios claros: o regime de excepcionalidade que se instala com o discurso da presidente; a face paternalista de que somente a presidente pode solucionar os problemas graves e emergenciais; de que os outros poderes sempre devem sucumbir `a vontade e `a açao do executivo, tal qual um poder moderador. O efeito desse discurso que paralisa a agenda política do país realmente relevante – uma agenda de todos e não exatamente uma agenda do governo – se faz sentir lentamente. O regime de excepcionalidade dos entes privados se dá uma vez que a própria ação pública é emergencial, logo o tratamento diferenciado daqueles que deveriam ser tratados como iguais é inevitável (no caso, as empresas privadas, como aquelas selecionadas a dedo pelo BNDES ou para exonerações tributárias). 


     A ação do governo é sempre pontual e concentradora de renda, além do que sempre restrita – especialmente em um estado concentrado no plano federal como o nosso. Medidas paliativas como as citadas apenas criam duas categorias: os privilegiados ligados `a máquina estatal e os outros, sendo que aos “outros” é mandado importante recado: “Parem de se esforçar pelo país e se esforçem pelos objetivos do governo e para o governo”, o que é prontamente atendido em um país sem tradição meritocrática como o Brasil.


      Vive - se pelas brechas institucionais: falhas legalmente aceitas no sistema político e jurídico, que limitam o desenvolvimento de longo prazo, mas que são potencializadas pelas elites atuais para o atendimento imediato de suas necessidades. Daí institucionaliza-se as brechas, que são falhas na aplicação prática da constituição, abertas pela própria legislação que abre espaço aos operadores do direito e `a sociedade, em inúmeras situações anômalas: universidade gratuita para os ricos, impostos regressivos e sobre itens de consumo básico, intervencionismos em órgãos que deveriam ser independentes, como o Bacen, além de órgãos de controle da administração e ambientais, além de toda a discricionariedade juridicional em favor dos ricos - são comuns prisões arbitrárias aos pobres e recursos infinitos somente aos ricos, etc.
  
         
          As propostas apresentadas são discutíveis. Não tenho a pretensão de propor uma solução única e definitive para o Brasil. Alguns objetivos no entanto são quase consensuais, inclusive estabelecidos em lei. É louvável por exemplo de se reduzir a pobreza ou a desigualdade. O problema é que esse quadro se deve a uma simetria de direitos entre a população, o que os economistas chama de igualdade de oportunidades, daí se incluindo tanto os direitos fundamentais, legalmente estabelecidos, quando daqueles advindos de um inserção real e mais completa,  abrangendo uma igualdade política e cultural.


        Ora, o discurso de excepcionalismo age exatamente contra essa igualdade, pois cria mais regimes diferenciados e atua contra  toda a igualdade plena (que inclui a liberdade de todos), que só é válida se institucionalisada horizontalmente, para todos.


         Os melhores feitos dos governos no Brasil provavelmente foram feitos com base nesse discurso, assim como os piores. Adiciona-se a ele a “doutrina do brasileiro genuinamente bom e cordial”, hipocrisia fundada pelas nossas elites promíscuas desde os tempos coloniais para disciplinar o povo e aceitar a dominação. Repito então o raciocínio: com base na doutrina do brasileiro cordial e da emergencialidade da situação, os politicos fizeram as melhores coisas, e as piores coisas. Não se trata de questionar as medidas em si aqui, mas de analisar um modus operandis, que me parece muito mais revelador, e se ele de fato está nos levando a um desenvolvimento real.


        O Brasil é um país com instituições sólidas e talvez o tempo já seja suficiente para o país evoluir naturalmente. Porém, talvez também isso ocorra a uma velocidade menor do que seria "aceitável", o que não é bom, especialmente se estamos considerando a situação emergencial. Além disso, o problema mundial da democracia ainda nem repercutiu direito aqui, para além das manifestações de junho. Somente quando resolver seus problemas antigos o Brasil estará apto a pensar em uma Nova Democracia.


       O desafio brasileiro, por isso mesmo, é ainda maior: garantir as condições básicas da população, que deveriam ter sido atendidas a décadas, ou séculos, sem prejudicar ou coibir as instituições democráticas que deveriam funcionar na Nova Democracia – é esse o atalho que a presidenta Dilma parece insistentemente querer pegar.

     * MAC