Chegaram de avião os médicos cubanos
salvadores da pátria. Já no saguão do aeroporto, guiados pelo
ministro-candidato da saúde, Padilha, as primeiras declarações não deixavam
dúvidas: vieram para trabalhar nos locais ermos e pobres, para ajudar em um
causa humanitária. Vieram para fazer exatamente o que os brasileiros não
querem, por estupidez ou egoísmo - e o melhor, eles ficarão "presos"
a esses locais, de modo a não concorrer com os brasileiros nos grandes centros.
A maioria dos governistas achavam até
outro dia que estávamos ótimos - o Brasil estava em um mar de rosas, enquanto o
mundo desenvolvido pagava seus pecados. Tudo bem se o governo Dilma não era lá
essas coisas, o Brasil já tinha mudado com o Lula, e, de certa forma, ficar
“parado” (o governo) já garantiria naturalmente o desenvolvimento brasileiro.
As manifestações e a guinada na economia mundial
parecem ter sido um balde de água fria na cara dos petistas e simpatizantes, ou
ao menos obrigou o governo a olhar para o lado e tentar mudar o discurso
unilateral e autoritário. O engraçado, porém, na prática política, é a
capacidade de distorcer as ideias e os símbolos, ou seja, o governo se
aproximou das manifestações de rua, mas sem mudar de fato em um triz o seu modo
de governar. É como se o animal petista-brasilienses virasse o pescoço, mas não
virasse o corpo de fato, ao grunhido das ruas.
Quem é contra os médicos? É a nova bravata
da presidente Dilma. Mas como acreditar em um governo que de fato não existiu?
Como acreditar em um governo, que se contentou com seu crescimento vegetativo e
não alcançou nenhuma das metas estabelecidas, poder, agora, há um ano das
eleições, implementar um programa emergencial que consiga sanar de forma
imediata grande parte dos problemas relacionados `a saúde no Brasil? Se uma
medida consegue ser eficiente e atinge grande parte de seus objetivos é porque
ela deveria ser alçada a uma
política de estado, e não a uma reles “condição emergencial”. Políticas
emergências são usadas em catástrofes, desastres inesperados e epidemias, ou
seja, situações realmente inesperadas. Situações crônicas de calamidade social,
que se estendem a séculos, deveriam ser tratadas com planejamento e eficiência.
Se não é o caso, o governo deveria admitir logo que a saúde brasileira vive em
estado de guerra permanente (o que não é muito distante, nem desconhecido) e
que o programa visa apenas a
"enxugar gelo". Pois o problema dessas medidas ditas emergências é
que elas representaram no geral um custo alto (a estagnação da agenda política e do planejamento do país, e
portanto paralisação das outras instituições que não o executivo federal), mas
tem efeito inócuo ou pouco representativo na realidade dos brasileiros.
Vejamos o exemplo de um outro
programa carro de frente da Dilma desde os tempos Lula, o PAC. Na época de seu
lançamento, o objetivo era o de fazer um "choque de investimentos e na
administração pública", contemplando medidas a serem tomadas entre os anos
de 2008 e 2010, e algumas medidas que teriam efeitos de longo prazo.
Veja algumas notícias do lançamento do programa
`a época:
O programa era para ser
temporário, justamente para realizar algo que se pretende agora, aumentar, como
uma medida emergencial, a taxa de investimento público, declaradamente muito baixa
e insuficiente para repor adequadamente a infraestrutura do país. Obviamente
que era sabido que deveria haver um aumento estrutural na capacidade de
investimento do estado, mas o programa se propunha a dar um salto nos
investimentos a partir de algumas medidas e obras. O que ocorreu no entanto é
que as ações não saíram do papel na velocidade desejada, os efeitos demoraram a
surgir, e o programa, que era para ser temporário, acabou se tornando
permanente.
Porque então a
Dilma tem a mania de anunciar suas medidas como emergenciais e temporárias? O
Minha Casa, Minha vida, também pretendia-se a solucionar, em grande medida, o
problema do déficit habitacional no país. Após alguns anos, constatou-se que a
maior parte do crédito destinava-se a imóveis de classe média e alta, de modo
que o programa estava servindo mais para encher os cofres das grandes
construtoras a juros subsidiados. As casas realmente populares são poucas,
demoraram a sair, e sendo feitas quase que directamente pelo governo, não são
raras as denúncias de malfeitorias e desperdício de dinheiro público
O ganho político
eleitoral de se anunciar o fim do déficit habitacional (ou o fim da miséria,
como se pretende agora), no entanto, não tem preço. Adiciona-se a isso grande parte
do autoritarismo nacionalista da presidenta e chega-se então `a sua fórmula de
governar por bravatas, que acabam com o tempo desmoralizando as ações do próprio
governo. Felizmente, o povo brasileiro atem-se cada vez mais `a prática das
necessidades do dia a dia, e menos aos discursos ideológicos de seus
governantes. (Apenas para ser justo, o próposito inicial do programa,
“construir 1 milhão de casa”, 4 anos após o lançamento, foi cumprido, mas para
mim ainda não é claro quantas desse total são realmente populares. http://mcmv.caixa.gov.br/numeros/).
No caso do programa dos
médicos, o custo político-eleitorial também é baixo, dada a estratégia dilmista
(varguista) de tudo ou nada (ou estao comigo ou contra mim). Na verdade o
governo já está lucrando eleitoralmente com a medida, num momento em que as
manifestações apenas deram uma trégua. É difícil ir contra a medida;
independentemente de seu efeito, ela vai ajudar o Padilha a sair como candidato
nas eleições do ano que vem.
Obviamente que os médicos não são a causa do problema, mas são parte
dele, assim como o funcionalismo público no geral. Contrapor a classe seria
ótimo, se algo fosse realmente feito. Permitir que os médicos estrangeiros
fossem para onde quisessem, aumentando a concorrrência nos lugares de maior
oferta de trabalho e permitindo a equalização dos salários nas diversas áreas
seria o primeiro passo. Médicos cubanos trabalhando para o Brasil e recebendo
de Cuba, com restrição completa de escolha de local de trabalho, coexistindo
com o regime normal dos médicos, não faz sentido nem do ponto de vista moral,
nem econômico (pra começar, esse plano vai sistematicamente trazer mais
médicos, ou será enterrado após a campanha do ano que vem?)
O que o Brasil
precisa em seus vários setores (inclusive na política) é de mais concorrência,
e não da criação de mais regimes de excepcionalismos.
A Dilma não vê problemas em colocar a população contra os médicos, assim
como colocou contra os bancos, contra as empresas, etc...
Para justificar minha descrença inicial neste governo, vou ficar apenas
em dois do que seriam objetivos fundamentais da Dilma (vou pegar leve e nem vou
citar a meta principal de “erradicar a miséria”): a política de juros e de
investimentos.
A Dilma comprou uma briga com o
Banco Central para a redução sistemática dos juros. Não há segredo nenhum
disso. A subordinação do presidente do Bacen aos interesses do Ministério da Fazenda,
em tese em defesa da produção e emprego em detrimento do controle da inflação,
foi um retrocesso (mais económico do que institucional) em relação ao que se
tinha no governo Lula. Na prática, o que se tem hoje é que os juros estão no
mesmo nível de maio de 2012, o segundo ano do governo Dilma, quando ela começou
a forçar uma queda maior dos juros, com uma inflação MAIOR do que antes! Eu me
pergunto: de que adiantou afinal esse esforço intervencionista do governo, a
não ser para deixar claro para toda a sociedade quem mandava no governo?
As trajetórias da SELIC e do IPCA nos ultimos
anos:
É sabido também que o efeito das variações
na SELIC (a taxa de juros afectada pelas decisões do Bacen) não apresentam
efeito imediato e previsível sobre as atividades económicas, sobretudo em
relação em relação ao consumo. De fato, a SELIC tem efeito sobretudo na
liquidez de agregados monetários mais gerais, próximos `a moeda. O crédito
pessoal permanece com juros muito altos, sobretudo devido ao
"spread", uma espécie de taxa de serviço, ou mesmo de lucro, paga ao
banco. A Dilma comprou outra briga com os banqueiros pela redução do spread e
depois estendeu a pressão para toda a iniciativa privada. O discurso oficial
era: "os bancos e as empresas lucram muito, mas prestam péssimos serviços
e cobram altos juros e altos preços".
A guerra contra os mal serviços
estendeu-se até mesmo sobre as ações e investimentos públicos, comprometendo a
licitação de hidreléctricas e de obras em aeroportos, dentre outras, para a iniciativa
privada. No geral, o governo considerava as condições da iniciativa privada
abusivas, dada a qualidade do serviço. As medidas do governo com esse teor
neo-nacionalista atingiu seu ápice no início de 2014 com 2 medidas: o desconto
na conta de luz e o congelamento dos preços de transporte público em algumas
capitais.
No final nao mudou nada, só
piorou, ainda vivemos no mundo dos juros enormes e serviços calamitosos.
Se
as medidas no geral tem pouco efeito prático para a população, podem haver
alguns malefícios claros: o regime de excepcionalidade que se instala com o
discurso da presidente; a face paternalista de que somente a presidente pode
solucionar os problemas graves e emergenciais; de que os outros poderes sempre
devem sucumbir `a vontade e `a açao do executivo, tal qual um poder moderador.
O efeito desse discurso que paralisa a agenda política do país realmente
relevante – uma agenda de todos e não exatamente uma agenda do governo – se faz
sentir lentamente. O regime de excepcionalidade dos entes privados se dá uma
vez que a própria ação pública é emergencial, logo o tratamento diferenciado
daqueles que deveriam ser tratados como iguais é inevitável (no caso, as
empresas privadas, como aquelas selecionadas a dedo pelo BNDES ou para
exonerações tributárias).
A ação do governo é sempre pontual e
concentradora de renda, além do que sempre restrita – especialmente em um
estado concentrado no plano federal como o nosso. Medidas paliativas como as citadas
apenas criam duas categorias: os privilegiados ligados `a máquina estatal e os
outros, sendo que aos “outros” é mandado importante recado: “Parem de se
esforçar pelo país e se esforçem pelos objetivos do governo e para o governo”,
o que é prontamente atendido em um país sem tradição meritocrática como o
Brasil.
Vive - se pelas brechas
institucionais: falhas legalmente aceitas no sistema político e jurídico, que
limitam o desenvolvimento de longo prazo, mas que são potencializadas pelas
elites atuais para o atendimento imediato de suas necessidades. Daí
institucionaliza-se as brechas, que são falhas na aplicação prática da
constituição, abertas pela própria legislação que abre espaço aos operadores do
direito e `a sociedade, em inúmeras situações anômalas: universidade gratuita
para os ricos, impostos regressivos e sobre itens de consumo básico,
intervencionismos em órgãos que deveriam ser independentes, como o Bacen, além
de órgãos de controle da administração e ambientais, além de toda a
discricionariedade juridicional em favor dos ricos - são comuns prisões arbitrárias
aos pobres e recursos infinitos somente aos ricos, etc.
As propostas
apresentadas são discutíveis. Não tenho a pretensão de propor uma solução única
e definitive para o Brasil. Alguns objetivos no entanto são quase consensuais,
inclusive estabelecidos em lei. É louvável por exemplo de se reduzir a pobreza
ou a desigualdade. O problema é que esse quadro se deve a uma simetria de
direitos entre a população, o que os economistas chama de igualdade de
oportunidades, daí se incluindo tanto os direitos fundamentais, legalmente
estabelecidos, quando daqueles advindos de um inserção real e mais completa, abrangendo uma igualdade política e
cultural.
Ora, o discurso de
excepcionalismo age exatamente contra essa igualdade, pois cria mais regimes
diferenciados e atua contra toda a
igualdade plena (que inclui a liberdade de todos), que só é válida se
institucionalisada horizontalmente, para todos.
Os melhores feitos
dos governos no Brasil provavelmente foram feitos com base nesse discurso,
assim como os piores. Adiciona-se a ele a “doutrina do brasileiro genuinamente
bom e cordial”, hipocrisia fundada pelas nossas elites promíscuas desde os
tempos coloniais para disciplinar o povo e aceitar a dominação. Repito então o
raciocínio: com base na doutrina do brasileiro cordial e da emergencialidade da
situação, os politicos fizeram as melhores coisas, e as piores coisas. Não se
trata de questionar as medidas em si aqui, mas de analisar um modus operandis, que me parece muito
mais revelador, e se ele de fato está
nos levando a um desenvolvimento real.
O Brasil é um país com
instituições sólidas e talvez o tempo já seja suficiente para o país evoluir
naturalmente. Porém, talvez também isso ocorra a uma velocidade menor do que
seria "aceitável", o que não é bom, especialmente se estamos
considerando a situação emergencial. Além disso, o problema mundial da
democracia ainda nem repercutiu direito aqui, para além das manifestações de
junho. Somente quando resolver seus problemas antigos o Brasil estará apto a
pensar em uma Nova Democracia.
O desafio brasileiro, por isso
mesmo, é ainda maior: garantir as condições básicas da população, que deveriam
ter sido atendidas a décadas, ou séculos, sem prejudicar ou coibir as
instituições democráticas que deveriam funcionar na Nova Democracia – é esse o
atalho que a presidenta Dilma parece insistentemente querer pegar.
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